Editorial

Desde os 11 anos, quando o saudoso Tio Magno me apresentou formalmente ao rock'n roll, eu já ouvia falar da sua morte anunciada. Felizmente o tempo segue contradizendo os boatos e o rock vai sobrevivendo e se solidificando. Continua sendo uma linha mestra para o seu público segmentado, uma mina de ouro a quem o explora de forma inteligente e uma dor de cabeça para quem por ele é criticado. Insiste em ser campeão de rentabilidade em turnês, vendas e downloads. Não cansa de ditar ideologias, comportamentos e movimentos. Apesar de uma expansão cada vez maior de outros sons e tendências, segue solitário na capacidade de criar ideologias, movimentar multidões em prol de um objetivo e fazer a gente se divertir e pensar ao mesmo tempo. Este blog é a minha maneira de agradecer ao rock'n roll pelos arrepios, suspiros, lágrimas e alegrias a mim proporcionadas até hoje. Aqui podemos discutir o rock de uma forma geral, analisar e debater seus fatos e ícones, seja por lazer ou mesmo como exercício crítico. Interaja! Mande suas postagens e sugestões, passe o blog a quem gosta de rock. Toda participação é bem vinda!! Longa vida ao rock’n roll e bom divertimento a nós todos!!

07 setembro 2011

WATERS E GILMOUR – O REENCONTRO EM “COMFORTABLY NUMB”



12 de maio... Arena O2, em Londres, completamente lotada. Roger Waters fazia outro espetáculo de sua tour comemorativa aos 30 anos do legendário álbum “The Wall”. Aquele era para ser apenas “mais um show”, até que a fabulosa “Comfortably Numb” iniciou.

Como sempre, havia o enorme muro projetado atrás de Waters, os prodigiosos efeitos de luz e sombras, os gestos e as poses cênicas do cara. Tal qual em todos os concertos, a banda estava atrás da parede e apenas o vocalista posicionava-se à frente dela, dando à ópera-rock o aspecto de um monólogo musicado. 

Os primeiros versos são praticamente declamados, como só ele sabe fazer. Aquela voz sombria do “homem triste do rock”, como li em um livro recentemente, criava o clima mórbido. Nessa hora a expectativa é que a música vá seguindo seu rumo normal e alguém apareça no topo do muro no lugar de David Gilmour, para a segunda parte do vocal e os irrepreensíveis solos.

É quando as luzes focam o alto da parede e lá está a figura que fará a parte de Dave. E o cara é... O próprio Gilmour!!! Exatamente! Pela terceira vez nos últimos 30 anos, David voltou a dividir o palco com Roger (ou a ficar muitos metros acima dele), tal qual nos shows da turnê de 1980 e 1981.

A platéia não sabia desta novidade, nem que o batera Nick Manson também participaria do show, na canção “Outside The Wall”. O anúncio extra-oficial era de que o encontro poderia acontecer no espetáculo do dia 17/05, também na capital inglesa, mas nada estava 100% confirmado. Talvez por isso o êxtase tenha sido ainda mais impressionante.

“Comfortably Numb” é um dos maiores hinos da história do rock, a única música que carrega consigo dois dos maiores solos de guitarra de todos os tempos. Virtuosa, enebriante, categórica, definitiva... Faltam adjetivos para descrever com o devido valor o último épico dos progressivos.

De todas obras primas do Pink Floyd, “Comfortably Numb” é aquela que melhor expressa o dueto mágico entre o cerebral Waters e o pure feeling Gilmour. É a plena união do pensar e do sentir, do corpo e da alma. Mesmo sendo tão complementar de um e outro, a canção jamais deixa de evidenciar a dicotomia entre uma metade clara e iluminada, cantada e tocada por Gilmour, e a escura e sombria, na voz de Waters.

Houve um tempo em que eu ouvia música ao voltar das baladas. Apagava a luz, fechava os olhos, colocava os fones e subia o volume ao máximo. “Comfortably Numb” era uma das canções que praticamente separavam meu corpo e mente. Os solos, o contraste entre a angústia de Waters e a suavidade dos vocais de Gilmour... Eu vivenciava aquilo de uma forma muito intensa, imaginava um filme diferente a cada audição.

Voltando à música, a letra é de Waters e o instrumental de Gilmour. Infelizmente essa foi a última canção em que os dois foram co-autores diretos. Diz a lenda que David compôs a melodia para primeiro álbum solo, de 1978, mas ela acabou ficando mesmo para o “The Wall”. Ao ser apresentado ao instrumental no estúdio, Waters encarregou-se de recheá-la e o resultado todos nós conhecemos.

Muitos sustentam que a interpretação de “Confortably Numb” esteja relacionada às drogas, mais especificamente à heroína. A hipótese é refutada por Waters, o que para mim já seria suficiente. De qualquer forma, quem conhece minimamente Pink Floyd sabe o quão simplista seria concluir que a música tivesse esse sentido por falar em entorpecimento no título. Roger Waters é genial demais para tão pouco. 

Na minha visão a explicação está no contexo que a canção assume no filme “The Wall”. A ópera rock trata da história do personagem Pink - para muitos um caractere fictício, para poucos uma personificação de Syd Barret, para mais alguns (eu entre eles) um rascunho da saga de vida do próprio Waters.

A análise precisa ser feita dentro da aspecto da desolação e tristeza que compõem o contexto mais amplo do “The Wall”. A letra traz todas as angústias da infância de Waters, refletidas no personagem Pink: os professores que limitavam suas reflexões, a ida do seu pai à guerra e sua criação sem a figura paterna, a mãe superprotetora. Resumidamente, tudo o que contribuiu para criar, dentro dele, mecanismos de defesa.

O garoto cresce com essas marcas indeléveis na personalidade, internalizando cada vez mais seus sentimentos e tornando-se insano em doses homeopáticas. Waters trata a supressão dos pensamentos de Pink como um problema da nossa estrutura social, assim como fez em outros momentos da carreira da banda (veja o contexto do álbum “Animals”, por exemplo...).

Cada um dos gaps de felicidade experimentados é um tijolo no muro da alienação de Pink, que em muitos momentos incorpora a personalidade de Roger quando mais jovem. Em “Mother”, do mesmo disco, uma das passagens que trata da superproteção da mãe de Waters, traz, na voz materna: “Of course mamma will help to build the wall...”

Quando Pink está “confortavelmente entorpecido” pelas drogas, sua demência acaba separando-o das pessoas e dos pensamentos que poderiam magoá-lo. A sua insanidade é fria, sem sentimentos nem emoções, mas tanto ela quanto o muro emocional que criou acabam protegendo-o dos fantasmas que transitam pelo mundo externo ao seu. 

Essa gélida zona de conforto é eficaz para blindá-lo, mas acaba isolando-o também das pessoas que querem ajudá-lo. Os versos iniciais da canção (“Is there anybody in there?” e “Is there anyone at home?”) são os chamados de quem está do lado de fora do muro de Pink para tentar tirá-lo da alienação.  Da mesma forma, a pergunta “Is there anybody out there?”, dita antes do início da música, é a forma de Pink/Waters demonstrar o incômodo do entorpecimento, e que a fuga passa necessariamente em saber se o que há do outro lado do muro são só espinhos.

O problema para o personagem é que, no contexto da solidão, tristeza e doidice de Pink, o compositor escancara a impossibilidade da volta atrás. Na última parte da canção, o lado mais sombrio de Waters aparece dizimando qualquer fio de esperança para o personagem: “eu me viro para olhar, mas está finalizado; eu não posso mais tocar nisso agora, a criança está crescida, o sonho acabou e eu me tornei confortavelmente entorpecido”.

Waters é realmente um mestre quando o assunto é remexer nas mazelas da natureza humana: alienação, frieza, insanidade, exclusão, perdas, destruição de qualquer vínculo afetivo ou social. Parece inacreditável que ele consiga nos fazer pensar que tais distúrbios podem até ser bons, considerando quão maléfico é quem/o que está do lado de fora do muro.

Antes que alguém relacione a letra com outras coisas, vale comentar que algumas experiências desagradáveis da saúde de Waters ajudaram a delinear a letra, em proveito de um sentido mais amplo. Seriam como os eventos perfeitos dentro do cenário desejado por ele.

As “mãos inchadas como balões” vieram de uma doença na infância de Roger, conforme comentado por ele próprio em entrevista (2009): “Na letra menciono que tive uma febre e que sentia as mãos como balões. Eu estava febril e delirava. Minhas mãos pareciam muito grandes, assustadoras...”.

No filme, “Confortably Numb” inicia com Pink catatônico em uma poltrona de hotel, imerso à alienação submetida por ele próprio. É quando um médico (incorporado nos concertos por Waters vestindo um guarda pó branco) o desperta para que ele possa ir ao concerto. 

Essa situação refere-se a um show do Pink Floyd na Filadélfia, em 1977. Na oportunidade Waters subiu ao palco sem condições de ficar de pé. Estava “confortavelmente entorpecido” por um remédio cavalar contra dores no abdômen, diagnosticadas depois como hepatite. Coincidentemente ou não, “Comfortably Numb” é sucedida, no disco “The Wall”, pela faixa “The Show Must Go On”. 

Se Waters foi genial na composição, Gilmour não deixou por menos na melodia. É mais do que perfeita a junção de feeling e técnica na condução da canção e principalmente nos dois solos. Alex Lifeson, guitarrista do Rush, diz que seus olhos enchem de lágrimas todas as vezes que ouve a música.

Como sempre, David é modesto ao tratar de suas realizações. Mesmo que os solos de “Confortably Numb” sejam referência para qualquer guitarrista, Gilmour os trata com a mais absoluta naturalidade: “Eu voltei ao estúdio e experimentei cinco ou seis solos. Neles, fiz os meus procedimentos usuais: ouvi-los e marcá-los como muito bons, bons e descartáveis. A partir daí eu sigo as marcações e vou tentando fazer um solo legal com base no todo. Foi o que fiz em “Comfortably Numb”, e não foi tão difícil assim”.  Tá bem, David...

O vídeo do reencontro, mencionado no início da postagem, segue abaixo, sem que maiores comentários façam-se necessários. Levante o volume e saia do chão... 

A pré-venda de ingressos para os shows de Roger Waters no Brasil se aproxima. Vê-lo ao vivo, para mim, será a realização de mais um sonho roqueiro. Seria querer demais ter David Gilmour em cima do muro?

Abraços a todos!



2 comentários:

ni disse...

Comfortably Numb é de fato uma das grandes obras da música no geral, para mim tem o mesmo peso de uma obra de Mozart, Bach, Beethoven...apenas um exemplo para mostrar a genialidade dessa música. Não sei muito que escrever sobre ela, a não ser elogiar e agradecer. Talvez o silêncio nessas horas já diga tudo, quando algo é considerado sublime, não precisa de palavras. Sobre o post, para mim esse foi um dos melhores posts que você já fez, realmente muito bom, feliz por ter voltado a postar. Agora só aguardar o Waters =).

wagoty disse...

perdao amigo mas vc não deixou brecha pra meus comentarios, simplesmente assino em baixo.